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Olá meu irmão.
Passou um mês.
Por um lado, ando a adiar escrever-te.
Torna tudo mais real.
Por outro, não consegui evitar mais.
Sei que nunca gostaste muito de lamechices,
e que me gozavas sempre por eu escrever.
Mas no fim do gozo, dizias sempre ”vá, até tá fixe.”
Por isso vou-te escrever este.
Pode ser que nos ajude, de alguma maneira.
Hoje esta caneta escreve diferente.
A minha mão escreve diferente.
As palavras saem mais claras, quase cinzentas,
da fusão da tinta preta com as minhas lágrimas.
Está um fim de tarde bonito aqui, não está ?
Brisa nem quente, nem fria.
Pacífico.
Luz alaranjada do sol baixo,
que se reflete neste jardim de pedra.
Nem precisa de ser regado, para se manter colorido,
porque cá, as flores vão aparecendo já crescidas.
Estamos tão perto um do outro,
mas não te consigo tocar.
Sinto-te aqui ao meu lado,
mas só um de nós é que consegue ver as nuvens leves,
que nos passam por cima.
A montanha de flores brancas em que a tua foto se deita,
traz-me memórias agridoces.
Memórias amargas,
levam-me de volta ao pesadelo,
do qual ainda estou à espera de acordar.
Levam-me para as últimas semanas,
em que tentamos voltar à rotina,
que deixou de ser rotina,
pois tu fazias parte dela.
Levam-me para os primeiros dias,
em que andávamos completamente perdidos,
entre choros e preparativos,
para te darmos uma despedida em grande,
a condizer contigo.
Levam-me ao dia,
em que duvidei da realidade, por completo.
Não acreditei durante horas.
Chorei até ficar com os olhos negros.
Não me saia uma palavra.
Levam-me àquela chamada em tempo real,
que oiço e reoiço,
vezes sem conta na minha cabeça.
Aquela voz em desespero de um irmão, em descrença,
que ficou marcada na memória em câmara lenta.
O tom, a entoação.
A palavra.
…
Levam-me ao primeiro momento que te vi, quando voltaste.
Momento mais difícil da minha vida.
Perdi todo o controlo em mim.
Joelhos falharam.
Arrepios de uma ponta à outra.
Tremores nas mãos.
Os meus olhos eram uma barragem que rebentou.
Dor insuportável, impossível de descrever por palavras.
5 balas doiam menos.
Não eras tu que ali estavas.
Levam-me para o dia que te trouxemos até aqui,
com as nossas próprias mãos.
Levaste um pedaço do meu coração contigo.
O desgosto no olhar do teu irmão.
O silêncio magoado, ensurdecedor, do teu pai.
Os murmúrios em desespero da tua mãe,
que me perfuravam como facas afiadas.
Mas também me trazem memórias mais doces,
dentro de toda esta amargura.
Apesar de tudo, todos vemos como um dia bonito,
como tu mais que merecias.
Os tons brancos trouxeram alguma leveza.
Ramos de flores lindíssimos por todo o lado.
Fotos que relembraram momentos felizes, que são todos, contigo.
Não senti que foi uma despedida,
mas sim uma celebração da tua vida.
A nossa despedida foi no dia anterior.
Quando só estávamos entre amigos.
Uma última noite juntos.
Sentamo-nos à tua volta, e conversámos pela noite fora.
Estavas lá connosco.
À medida que a malta ia saindo, a noite ia clareando.
Fiquei contigo a noite toda,
até a manhã se espalhar pela sala.
Sentei-me ao teu lado e olhei-te, em silêncio.
Falámos um com o outro de boca fechada.
Não sei quanto tempo estivemos assim, mas pareceram dias.
Se umas horas atrás, não te conseguia encarar,
agora não conseguia tirar os olhos de ti.
Finalmente eras tu.
Eras tu, a descansar.
Em paz.
Foi aí. Essa imagem.
Foi aí que me despedi de ti.
A cerimónia que os teus pais te organizaram na quinta,
no dia a seguir, depois de tudo, foi harmoniosa.
Rimos, chorámos, abraçámos.
Relembrámos as tuas melhores histórias.
Veio tanta gente despedir-se de ti.
Nem tu sabias o amor e a admiração que espalhaste por aí.
Passou um mês.
Ainda é difícil digerir.
Têm-me dito para seguir em frente,
e que o tempo vai ajudar,
e eu sei que vai.
Mas por enquanto,
o tempo não parece andar.
Não percebo como é que o mundo não parou por ti.
O nosso parou,
mas o dos desconhecidos parece ter continuado.
Passou um mês,
e a comida ainda não me sabe ao mesmo.
A música soa diferente.
A cerveja não me cai tão bem, como caia quando brindávamos.
Não tenho gostado tanto de estar sozinho.
Tenho tido uma certa inveja, e até repúdio,
de gargalhadas de estranhos, injustamente.
Cada sorriso que me tem saído, nunca vem completo.
Passou um mês,
e a nossa casa não parece ”a nossa casa”.
O trio da porta 11, 2E,
passou a ser um triângulo com dois lados.
Durante 3 semanas, a porta do teu quarto esteve fechada.
O ir lá bater, passou a um beijo rotineiro na minha mão lá encostado.
Por momentos dava a sensação que estavas só lá,
de air pods nos ouvidos, a ver futebol, o normal.
Finalmente ganhei coragem de abri-la e, acrdites ou não,
foi o tocar numa camisola tua, que me mandou abaixo.
Foda-se, saudades tuas.
As tuas chuteiras na marquise.
A tua escova de dentes e o teu perfume, na casa de banho.
Os teus cereais na cozinha.
Tudo dói.
Passados uns dias, foi tudo embora.
Sentei-me no teu quarto, agora vazio,
com uma coluna a dar os teus funks horríveis.
As minhas lágrimas convidaram alguns sorrisos que me iam saindo,
para dançar,
enquanto te ia relembrando.
Tantas vezes quando te relembro,
seja sozinho ou em conversas com o nosso grupo,
ou com a tua família,
a vontade de chorar vem, mas é ofuscada pelo riso.
Até nestes momentos nos fazes rir. Só tu.
Eras a voz mais alta da sala.
O raio de sol, entre as nuvens carregadas.
O bobo da nossa corte.
A história mais descabida.
O passo mais criativo na pista de dança.
Boa cabeça para números.
O bater na porta do meu quarto às 11 da noite, para irmos sair.
Um dos melhores wingmans da história.
Vitórias e golos marcados,
por todos os relvados e equipas que passaste.
Eras o cotovelo pousado no meu ombro,
nas conversas entre jolas em roda de amigos.
A mão que me puxou vezes sem conta,
das areias movediças que a vida nos vai pondo à frente.
Um puzzle na mesa da sala.
Um riso contagioso, inconfundível.
Eras festa.
Sucesso invejável com as meninas.
Música péssima nas colunas, sempre que entravas no meu carro.
Um pedido exagerado de jolas para nós, sempre aos dobros.
Afeto disfarçado de macheza.
Boa educação e honestidade.
Generosidade e discussões evitadas.
Eras filho exemplar para os teus pais.
Irmão atencioso, para os teus irmãos.
Amigo presente, para os teus amigos.
Eras imperdoavelmente tu.
Como eu me lembro de te conhecer…
Putos de nono ano perdidos no entusiasmo de ir numa viagem ao estrangeiro sem os pais.
Palhacinho da tua turma, e eu da minha.
Clique instantâneo.
Bons tempos.
Os danos que causámos nessa viagem juntos,
acabaram por construir esta ligação, que é para sempre.
Quase 10 anos passaram,
e não nos largamos mais até agora.
Passou um mês,
e sabes que mais ?
Conseguiste fazer algo incrível.
Conseguiste pôr tudo tão claro para nós.
Eu desconfiava, mas agora tenho a certeza que sou um sortudo,
e tu também o foste.
Conseguiste unir-nos ainda mais, e fazer-nos perceber o que
realmente interessa.
Que sorte temos nós nos amigos incríveis que nos rodeiam.
Todo o apoio, todo o amor, toda a lealdade.
Fariam tudo por nós. Incansáveis.
E que sorte na família linda que tu tens.
Corações tão puros, tão fortes.
Generosidade incomparável com tudo o que eu já vi.
Os teus pais são uns anjos.
O teu irmão mais velho é não só um exemplo para ti,
como para todos nós.
A sua resiliência e coragem, o carinho que tem por ti.
O teu irmão mais pequeno é um doce,
tão inteligente e com mau perder como tu.
Em melhores mãos não podia estar.
Ah meu mano…
Tens sido todas as vírgulas, no meio dos meus pensamentos.
Daí o nome deste poema, uma vírgula,
porque tu nunca vais ser um ponto final para nós.
Enquanto estivermos por cá, tu também estás.
”Boa tarde. Desculpe, mas vamos ter que fechar”.
Olha, o segurança já me está a mandar embora.
Já sabes que quando me sentir boa companhia para ti,
venho cá chatear-te um bocado.
Agora também vou deixar-te descansar outra vez,
sei que gostas tanto de ter o teu espaço quanto eu.
Assim que tiver novidades, venho por-te a par de tudo.
Incluindo se entretanto estiver uma menina em vista,
sei que gostas sempre de saber.
Bem, tenho que ir irmão.
Gostei de te ver.
Vamos falando
