Contrato Violado
Pensava que tínhamos um contrato,
mas tu violaste-o.
É quarta feira.
9h30.
Saio de casa, ansioso.
Fones alimentam-me
com música, como se fosse um cateter a injetar-me soro.
Esse é o verdadeiro pequeno almoço.
Paragem.
Autocarro atrasado.
Clássico.
Carris, sinceramente,
vão pó caralho com a vossa desorganização.
Mas nem vou entrar por aí.
Lá chega o meu.
6 paragens até ti.
Às quartas feiras, e só às quartas,
a estação de Santa Apolónia é generosa comigo.
Oferece-me um brinde, sem nada em troca.
Quase como um ”bom dia”.
Tu.
Já passaram 5 paragens.
Falta 1 para ti.
Sistema nervoso lança o alarme.
Sargento dentro da minha cabeça atualiza-me:
”Senhor, 30 segundos até ao contacto.
Preparar para o embate”.
Vejo se estás na paragem.
Estás.
”Sargento, tenho olhos nela.
Aguardemos.”
Autocarro pára.
Finjo-me de despercebido.
(Não me julguem, vocês fazem o mesmo.)
Ela entra.
Espero 2 ou 3 segundos.
Agora olho.
Ela olha de volta.
Baixamos a cabeça simultaneamente.
Trocamos sempre o mesmo olhar.
”Bom dia” para ti também.
Autocarro segue.
Os nossos olhos cruzam-se durante a viagem.
Quantas vezes ?
Depende de como cada um dormiu na noite passada.
Depende se está dia de sol.
Depende se tenho R&B a passar nos fones,
sabem como é.
Olho para ela.
Ela olha para mim.
Eu desvio.
Olho para ela.
Ela desvia.
Olha para mim.
Jogamos à apanhada com os olhos.
Flirt inocente, inofensivo.
Sem grande objetivo.
Bom.
Tu tens pinta.
Pelo menos às quartas feiras.
Arrojada.
Diferente.
Atitude de quem quer dizer algo ao mundo.
Estilo elegante mas que conhece bem as ruas.
Contemporâneo com um toque old school, ou vice-versa.
O teu estilo és tu.
Usas-te a ti própria.
Gosto disso.
Gosto do teu outfit.
Como sempre.
Espero que gostes do meu.
Escolhi-o há bocado a pensar em ti.
Acho que te vi no canto do meu espelho a espreitar.
Não sei o teu nome, nem tu o meu.
Aliás, não sei nada sobre ti.
Nem quero.
Gosto da nossa relação assim.
Sei que não pertencemos um ao outro.
O meu instinto assim o diz.
Confio nele.
Não posso falar por ti, mas sinto que o teu diz o mesmo.
Ficamos pelo ”bom dia” que dizemos com os olhos um ao outro.
Acho que as nossas vidas se cruzaram para isto.
Para quê complicar ?
Faz o meu cérebro ensonado sorrir
e parace-me que faz o mesmo com o teu.
Saímos na mesma paragem.
Deixo-te sair primeiro,
a minha mãe ensinou-me assim.
Vejo-te desaparecer em direção ao que quer que seja que te fez acordar hoje.
Tal como tu, sigo para o que me fez a mim.
Cada um vai à sua vida.
Pelo menos,
costumava ser assim.
Mas hoje, tu não estás na paragem.
Nem nas duas últimas semanas.
Pensava que tínhamos um contrato,
mas tu violaste-o.
Às quartas de manhã,
sem palavras,
cruzamos olhares,
fazemo-nos sentir bem um ao outro,
e seguimos com o nosso dia.
Esse era o contrato.
Sr Motorista,
o que é que aconteceu à menina da paragem de Santa Apolónia,
que me diz ”bom dia” com os olhos,
todas as quartas,
a esta hora,
nesta paragem ?
Ele não vai ter a resposta, é certo.
Gostava daquela incerteza se ias estar na paragem ou não.
Mas lá estavas tu, sempre.
Gostava de sentir os teus olhos em mim.
Davas-me confiança.
O dia começava bem.
Estava pronto para o que se seguia.
Agora,
as quartas feiras têm sido só quartas feiras.
A viagem de autocarro tem sido só uma viagem de autocarro.
Monótona.
Enevoada.
Adormecida.
Antes era só mais um dia da semana,
mas tu melhoraste-o.
Agora é só mais um dia da semana,
mas tu pioraste-o.
Será que compensou ?
Só espero que, ao menos,
estejas a receber um bom dia melhor que o meu.
Para ser sincero,
é pouca a esperança de te ver na próxima quarta.
Acho que desapareceste de vez.
Vou-te esquecer.
Sem ressentimento.
Foi bom enquanto durou.
