Noite Esquecível – Guga Morgado

Noite Esquecível

Foda-se.

Deitado na cama.

Corpo dorido.

Pouca luz.

Cabeça pesada.

4 da tarde.

Dois irmãos no meu quarto.

Preenchemos as falhas amnésicas uns dos outros,

de episódios da noite passada.

 

Hoje é dia cinzento, lento, de quarto.

Ontem houve farra.

”Friends” na televisão para curar a alma.

Volume no mínimo.

 

Fomos jantar todos juntos ontem.

Sempre a melhor parte da noite.

Semana toda à espera disto.

1 milhão de € ? Um ferrari ? A Zoë Kravitz ?

Pó caralho.

Deêm-me uma tasca rasca,

com bitoques, jola,

e os meus irmãos e irmãs à volta da mesa.

Tou em casa. 

 

A clássica manteiga mimosa disfarça o pão de ontem para

entrada, que forra o estômago.

Jarros de cerveja.

”Bora virar!”

”Hoje lá no trabalho…”

”Pode trazer mais um jarro ?”

”Bora fumar ?”

”Já sabes a última do…”

”Quem é que ainda não pagou ?”

 

Saímos do restaurante.

Olho já fecha e pé já tropeça.

Cigarro.

”Oh, vamos para onde ?”

Arranca. 

 

Ruas de Lisboa.

”Lisbonita”, dizem.

Só se for de dia.

Calçada molhada.

Cerveja para o caminho. 

 

Fila pelo passeio.

Ainda somos uns quantos.

Gosto quando estamos todos.

Organizamo-nos em pares ou trios.

Cada qual com a sua conversa. 

 

Neons com nomes aleatórios convidam-nos a entrar.

O ar está laranja,

da luz vinda dos candeeiros altos,

plantados nesta rua, suja.

 

Escolhemos o spot.

O mesmo de sempre.

É perigoso variar.

Cigarro.

Um olhar rápido por quem rodeia.

Boa, não conheço ninguém.

”Quem é que quer jola ?”

”Eu pago a próxima.”

Bebemos 1, 2, … 9. 

 

Emerge do chão um clã de raparigas bem produzidas.

Elas vieram para matar.

Vou falar com elas.

Não vou nada.

Medo.

Coração mete a quinta.

Eu posso morrer. 

 

Aposto que nem ia gostar de nenhuma.

Carecem de individualidade.

Pelo menos 3 já conheço só de olhar. 

 

Mas os cabelos brilhantes delas,

os lábios carnudos com baton,

pernas longas,

defeitos escondidos, pintados pela cosmética,

peles lisas e os olhos de leoas,

intimidam.

Não nego.

 

Caguei, tou bem aqui. 

 

Há uma guerra a ser travada entre o álcool e a timidez.

O campo de batalha sou eu.

Timidez ganha por enquanto,

mas hoje eu torço pelo álcool. 

 

“Bora mijar.”

Ecoponto, canto escuro, ponto de situação.

Shot de tequila, sem sal nem limão.

HOMEM RIJO.

Cala-te caralho. 

 

Misturam-se grupos.

Falo com uma rapariga.

Olho azul, cabelo dourado.

Saia longa de ganga, diferente.

Gostei. 

 

Falámos de tempos de secundário, dos sonhos

dela e de poesia.

É doce e sensível.

Mas acho que não faz o meu género.

Nunca fui muito de barbies simétricas.

Prefiro um ou dois erros de fabrico.

 

Será que tenho um género ? Sei lá. 

 

”Onde é que se vai a seguir ?”

”Outra vez ? Que merda.”

Mas bora.

Perdi a rapariga de vista.

Não faz mal, não ia ser o amor da minha

vida. 

 

Um está demasiado bêbado.

A outra trabalha amanhã.

Sobreviventes seguem. 

 

Voltámos à formação, pares e trios.

A malta ri e chora.

Desiquilíbrio.

Bebedeira porca, como se pretendia.

Cerveja para o caminho, sempre. 

 

Discoteca.

Fila.

Cigarro.

Chamada.

Alguém nos vem buscar.

 

Traboco vestido de preto à porta, com os seus 3 clones atrás.

O músculo não disfarça essa mente desabitada.

Cara de mau.

”Tás a olhar pa onde Stallone ?”

”A mãe não lhe deu atenção, tá visto.”

”Precisas de um abraço princesa ?”

Penso em voz baixa, claro.

Sair de pinga de sangue a escorrer do sobrolho outra vez não está

nos meus planos para hoje.

Segurança avalia o rácio. Tenho sorte, as minhas amigas são lindas de morrer.

”25 €, tem 2 bebidas”

Roubo, não há novidade.

 

Entramos.

Mar de cabeças.

Gente sem gente dentro.

Como é que um sítio tão grande e tão cheio, parece tão vazio.

Toda a gente é igual a toda a gente. 

 

Luz baixa para esconder o pecado.

Dançamos todos juntos em roda.

Rimos.

Adoro-vos.

 

Funk nas colunas, ugh.

É o que os cérebros contemporâneos comem.

Vergonha alheia.

Metam Allen Halloween,

ele diz a verdade sobre esta cidade.

Sobre ti.

Menina de fábrica. Básica.

Top da zara, mala da bimba y lola, all star.

Calça com padrão, hoje tamos alternativas.

Que doida.

Não percas tempo aqui linda,

vai descobrir quem és.

A tua cabeça derretia e os teus joelhos tremiam,

se ouvisses um som da Bruxa. 

 

”Não saiam daqui, vamos à casa de banho.”

As pessoas engolem-se.

Está tudo turvo.

Só tenho 2 cigarros, foda-se. 

 

Será que esta gaja está a falar comigo há muito tempo ?

”Desculpa, como é que te chamas mesmo ?”

Berramos ao ouvido um do outro.

Não me lembro de uma palavra.

O álcool finalmente derrotou a timidez,

mas agora as minhas frases saem às cambalhotas.

 

Será que te quero beijar na boca ?

Será que tu me queres beijar na boca ?

Vida de solteiro, fazer o quê.

Intimidade física faz falta.

Às vezes tem de ser. 

 

Preferia beijar uma boca que já conhecesse.

Preferia o teu sabor.

Preferia o teu perfume.

Preferia segurar as curvas do teu corpo.

O teu cabelo de veludo.

Saudades tuas.

Mas tu não existes.

Ainda. 

 

Se calhar sou esquisito.

Ou se calhar não.

Se calhar não há uma certa para mim.

Enfim. 

 

Ela ainda está a falar comigo.

Não me lembro do nome dela outra vez.

Menina sem nome e sem cara,

quero dar-te a melhor noite da tua vida.

Confiançudo demais agora.

 

Queres ser minha namorada hoje ?

Tratava-te bem.

Eu tenho bom coração, acredita.

Eu dou o meu assento às senhoras no autocarro.

Eu choro a ver filmes. Não sou como eles.

Faço questão de te fazer vir, sou um cavalheiro.

Mas eu nem sei o teu nome. 

 

” Temos que bazar ” diz a melhor amiga.

Frustração ? Alívio ? Uma mistura.

Bom, parece que a única coisa que passa nos meus lábios hoje

é este whisky cola infinito. 

 

Saímos.

Está de dia.

Estômago implora por comida.

Já só estamos metade dos que entrámos.

A noite levou o resto. 

 

Pão com chouriço e caldo verde.

Pedaço de céu quente nas minhas mãos.

Orgásmico.

Ainda bem que sou português.

 

Eu acho que tenho fones…

Props a mim do passado por me ter lembrado.

Vou a pé para casa.

Sozinho.

Gosto de estar comigo, sei que não me falho.

”Deêm-lhe aí malta.” 

 

Subo a rua, e outra, e outra.

As paredes e os passeios mexem-se sem avisar.

”Parem quietos para eu conseguir andar!”

Ao menos tenho a minha música. 

 

Madrugadores olham-me de lado.

Não olho de volta.

Não os julgo. 

 

Casa.

A fechadura da porta do prédio faz-me fintas.

Mais escadas.

Outra fechadura, outra chave, outra chatice.

Flutuo até à cama e enterro-me no colchão.

Foi mais uma noite esquecível.