Outra Noite Esquecível – Guga Morgado

Outra Noite Esquecível

Noite de verão.

Manga curta.

Pele quente, a estalar do bronze,

depois de um dia longo de praia.

Sinto que o sal ainda não me saiu do corpo, que bom.

Roda de amigos.

Pré noite.

Divido uma de vodka, com um dos meus bros. 

 

Sempre adorei os pré noites.

Muitas das vezes, mais que as noites em si.

Aquela mistura de comichão no estômago,

com vozes altas e gargalhadas,

com álcool, gelo e fumo de cigarros,

com olhares e palavras a voarem entre grupos,

com expectativas altas e curiosidade sobre o que se vai passar

nas próximas horas. 

 

Passados uns copos,

a pálpebra do olho já vai descendo ligeiramente.

As palavras já se pisam umas às outras.

Já não estou a dar ao pé.

Os ombros já estão mais relaxados.

Bebo o último copo.

Já estou a ficar, parece-me.

Boa. Arranca. 

 

Fila na porta da discoteca.

Já não fico nervoso.

Sou maior de idade, há uns anos.

Antes ficava.

Desde os 14 anos que tento entrar em discotecas.

Umas vezes deu, mas levei muita barra nos tempos que se seguiram.

Nos últimos anos já não acontece.

 

”Têm isto de consumo.”

”Raparigas pagam x, rapazes é o dobro.”

Vai-te foder oh Samuel Massas.

Também já sabia para o que vinha.

Vá, bora. 

 

Entramos.

Primeiro que tudo, matar a sede.

Cotovelo em cima do balcão.

Corpo de lado.

Olhada para ver os movimentos de hoje.

Ainda não está muito cheio.

Whisky cola bem servido, ao menos isso. ”Obrigado.”

Cigarro.

”Bora lá para o meio”. 

 

Misturamo-nos com quem lá está, onde se baila.

Passos de dança ainda tímidos.

Olhamos para a esquerda e para a direita. 

 

Comentamos aquela, o outro e aquilo.

Começa a encher, ao contrário do meu copo.

”Bora buscar outra ?”

 

Balcão outra vez.

Olho para a frente e um raio de luz alaranjada passa de relance

numa cara, escondida no meio de uns caracóis selvagens.

É ela.

Reparei nela ontem.

Esteve aqui, também.

Apanhei-a a olhar para mim 2 ou 3 vezes,

mas não percebi se foi com intenção ou não.

Não tive coragem de ir falar-lhe. 

 

Tens que ir hoje.

Não sejas pussy.

Falámos sobre isto ontem, lembraste ?

Hoje ia ser diferente.

E vai ser.

Mas calma, mais daqui a bocado. 

 

Volto para a minha roda.

Dançamos já mais soltos, a celebrar o calor de verão.

É pena não estarmos cá todos, como dantes.

Já se está naquela idade em quase tudo trabalha.

Antes passávamos o verão todos juntos.

Todos os dias.

Íamos a todas as festinhas da terra e por vezes à grande cidade. 

 

A única preocupação durante aqueles três meses era se ia ficar na

mesma turma, com a minha malta, quando Setembro viesse. Saudades.

Agora o normal é irmos por turnos, em grupos de 5 ou 6.

De vez em quando conseguimos juntar tudo. São as melhores.

Não é o caso de hoje, infelizmente.

 

”Bora mijar.”

Casa de banho.

Pouso o copo e certifico-me 2 vezes se está firme.

Se ele cai é tragédia.

Mão na parede, para não desiquilibrar.

Queres ver que me está a bater agora o álcool do pré noite ?

Ponto de situação com o meu parceiro.

Ah ya, estou todo fodido.

”Bora voltar.” 

 

Na viagem de volta para o nosso grupo,

avisto outra vez aqueles caracóis mal comportados à distância,

na linha do meu caminho. 

 

Há qualquer coisa em ti que me chama,

e não é só essa beleza natural pura, óbvia.

Ainda conseguiste vir mais gata hoje, não sei como.

Quero ir falar-te, mas tenho algum receio.

 

É aquela pele morena, cor de magnum amêndoa.

Caracóis castanhos, apanhados hoje, com uns toques de dourado

quando a luz passa, do sol que teve a sorte de tocá-los. 

 

Olho escuro, quase preto… tenho queda por esses.

Não dizem muito. Deixam o mistério em aberto.

Maquilhagem ligeira, só para acentuar a benção que essa cara é.

Lábios bem desenhados, que me deixaram curioso sobre o sabor

deles desde ontem.

Brincos elegantes de estrelas do mar, cor de ouro, que condizem

na perfeição com o bronze dela.

Top de remendos de ganga, com um corte diferente.

Nunca vi assim, adorei.

Assenta-lhe que nem uma luva.

Nada nela é forçado.

 

O meu bro parou ao lado do grupo dela, sem saber,

para cumprimentar um amigo.

Falam um bocado.

Oportunidade perfeita para mim. 

 

É agora.

Vai !

Eia mas vou levar barra.

Se calhar não.

Vou vou.

Cala-te, deixa-me concentrar.

Cala-te tu, somos a mesma pessoa !

Vá, o que é que eu lhe vou dizer ? Sei lá.

Tem que ser agora, acho que ela já reparou na minha presença.

Vai !

3… 2… 1… 

 

Toco de leve no braço dela.

Ela vira a cara.

Coração salta um batimento.

Não há volta a dar agora.

 

”Olá, acho-te linda de morrer e os teus brincos são bue giros e

diferentes, ficam-te mesmo bem.”

Ela responde com ”obrigada” e um sorriso de orelha a orelha,

que tocou nos tais brincos.

”Estou tenso contigo desde ontem, para ser sincero.

Já tinha reparado em ti.”

Levo com uma gargalhada nervosa, mas boa,

de quem não estava à espera de ouvir aquilo. 

 

Pergunto como se chama e de onde é.

É a Joana de Lisboa.

Respondo às mesmas perguntas, que ela mandou de volta para mim.

Mais um minuto ou outro daquela conversa inicial de chacha.

Sorriso lindo o dela.

Sem aviso o meu instinto diz-me algo e decido perguntar. ‘

‘Tens namorado não tens ?”

Ela inclina a cabeça para o lado, junta as sobrancelhas como quem

tem pena e encosta a mão no meu ombro, enquanto me responde.

”Tenho, desculpa!” 

Pediu-me desculpa. Quão querida a Joana.

”Ahhh é pena… olha, um brinde ao teu namorado.”

Brindámos e despedímo-nos com um sorriso.

Triste mas justo. 

 

Foda-se.

Ao menos fui falar, olha.

Já foi bom para mim.

Mas foda-se.

Estava a querer-te, não vou mentir.

Enfim, é assim.

 

”Quem era ?”

”Tem namorado.”

”Caga nisso bro, bora voltar.” 

 

Voltámos para os nossos.

Dançamos outra vez.

Falamos de berro ao ouvido.

Rimos… fumamos… bebemos….

Olha, tenho um whisky novo na mão. 

 

Os olhos voltam a dispersar, passado um bocado.

Cruzam com esta e aquela.

Dei conversa a outra e ainda a mais uma.

Não conectou nada.

Já não há vontade.

Queria a Joana de Lisboa.

Ficou-me com os olhos, por hoje. 

 

Uma barra é uma barra.

Tantas que já levei, que até faz bem, por um lado.

Nem me afeta muito, geralmente.

É o que é. 

 

Mas às vezes há umas que batem e fazem pensar.

Estou um bocado farto deste jogo de noite,

de engantes manhosos.

Farto da maior parte das vezes ir falar com raparigas que eu sei

que não me dizem nada,

mas que por uma ou outra razão, são atraentes aos meus olhos,

turvos de álcool.

 

Ter que pensar e repensar,

no que lhe vou dizer para não ficar estranho.

Ir com uma improvisada na ponta da língua para abrir,

que seja genuína, mesmo não a conhecendo.

Nunca pick up lines feitas. Que nojo.

Ter que ser eu a chegar-me à frente, sempre.

Meninas, por uma vez, que sejam vocês. Não há nada mais sexy.

Ter que me editar, e não ser verdadeiramente eu.

O receio de levar um não e mexer-me com a autoestima,

apesar de saber o que valho, que não é isto.

E para quê ? 

Uns beijos na boca do momento ?

Uma foda guardada em flashes na minha memória ? 

 

Não tenho problema absolutamente nenhum com um simples comilanço

de discoteca, nem com uma one night stand.

Até sou bastante a favor, se me perguntarem.

O meu problema é quando não é natural.

É a procura exaustiva.

É levar 3 barras, para a 4ª dar certo. 

 

Porque é que me esforço tanto ?

Que puta de canseira. 

 

Se nos dessem tempo e espaço,

tirassem os olhos de nós,

sem amigos a julgar à volta,

quem sabe se não íamos gostar mesmo um do outro, ou não,

mas só pedia 10 minutos de conversa real. 

 

Volto os olhos para a minha roda de novo,

enquanto estes pensamentos me envenenam o mood.

Olha, o meu bro já se safou.

Fico contente por ele.

Chega-lhe. 

 

Olho para as minhas amigas, as duas de nascença. Irmãs.

Estas sim, são as mulheres da minha vida.

Uma namora e muito bem entregue que está, a outra é solteira.

Sei que esta segunda, de vez em quando, também queria estas

diversões espontâneas. Quem não ?

Mas sei também que partilha destes meus receios. Mais até.

Se vocês a conhecessem como eu conheço,

faziam fila até ao estacionamento, seus burros.

”Venham cá minhas meninas.”

Abraço a 3, prolongado. 

Dizemos o quanto significamos uns para os outros.

Está mais que sabido, mas é sempre bom relembrar.

Estas não me falham.

Sorriso voltou. 

 

Música acaba, pagar o cartão, sair, ubers.

”Digam quando chegarem a casa.”

Chego eu a casa.

Mensagem delas, está tudo seguro.

Vamos lá enterrar os cornos neste sono profundo que me espera. 

 

Hoje já estou na praia, de olhos no mar,

a pensar sobre a noite passada,

que parecida a muitas das últimas foi.

A pensar na Joana de Lisboa, que vai vaguear na minha mente nos próximos 3 ou 4 dias.

A pensar nos olhares que ficaram por olhares,

com outras igualmente bonitas.

A pensar nesta minha timidez da merda,

que só vai desvanecendo com 10 ou 15 bebidas. 

A pensar que nada disto importa, porque tenho comigo o melhor

grupo de amigos que este mundo já viu,

quer eu leve um sim ou um não na noite.

A pensar num deles que foi embora, um dos bons,

que nos faz tanta falta.

Ia adorar ter estado connosco lá ontem.

A pensar e a pensar… 

 

Acho que trouxe papel e caneta no saco.

Vou escrever sobre isto, para me ajudar a raciocinar.

Também não tenho nada para fazer.