Tempos Vivos
Sozinho.
Olhos abertos, mas longe,
bem longe de mim.
Mente salta entre pensamentos diversos,
como saltam os olhos quando chegamos ao café,
e vamos cumprimentando conhecidos,
até chegar ao nosso grupo.
Mas aqui não há local de chegada definido,
só de partida.
Vou só, até a realidade chamar por mim de novo.
Estou num ”tempo morto”.
Fila.
Sala de espera.
Trânsito.
Aeroporto.
Intervalo para cigarro.
Furo de horário.
Viagem longa.
Paragem de transportes públicos.
Que mel.
”Tempo para matar” dizem eles.
Tempo é tudo o que temos, para quê matá-lo ?
Pessoalmente,
gosto destes pequenos sofrimentos da vida.
Agrada-me testar os limites da minha paciência.
Lutar e dançar contra mim próprio dentro da minha cabeça,
até um de nós ganhar.
Mas empatamos sempre.
Ou até dar em louco.
Nunca chegou a isso…
ou se calhar já e eu não me apercebi.
Mas penso que loucos só são aqueles que não se questionam se são loucos ou não, de vez em quando.
Assumo que a vida é mais louca que eu,
por isso há que manter alguma sanidade.
Tempos mortos.
Que peso, o tempo.
Distraídos nem o sentimos,
mas conscientes dele,
sufoca-nos.
Mas a mim não vais sufocar.
Há muito que não sufocas.
Não me lembro da última seca que apanhei.
Dou-me demasiado bem comigo próprio,
para haver silêncios constrangedores.
Mesmo quando não tenho nada para me dizer,
há um universo infinito,
logo após a fronteira dos meus olhos.
Que prazer é desligar de mim,
e consumir os meus rodeios.
Observar, só.
Ser o figurante, em vez do protagonista.
Ser um mero estranho na história de outra pessoa.
Não ser ninguém para ninguém.
Ver os outros a viverem o seu dia.
Por uns segundos, viver a vida deles.
Sorrir com os seus sorrisos.
Chorar com as suas lágrimas.
Que problema vais tu a resolver nessa cabeça ?
Que profissão,
nome, idade,
nacionalidade, personalidade,
gosto musical, estado civil,
é que eu te vou pôr enquanto passas por mim ?
Lá vão os turistas a passear os seus sacos de compras
e selfie sticks.
Lá vão os licenciados a exibir os sobretudos
e apple watches.
Lá vão os comerciantes a fumar cigarro anti-stress
com o segredo do negócio na mão.
Lá vão os estudantes a gritar a juventude
e a fritarem com o futuro que se aproxima, para dentro.
Lá vão os pais a correr de atraso,
em direção à responsabilidade.
Lá vais tu, ao ritmo que é só teu.
Enterrada nos headphones,
com os cabelos a saltar nos ombros.
Expressas-te na roupa que trazes, que parece que foi feita só
para ti.
Caças-me logo os olhos com essa.
O melhor desfile de moda do mundo são as ruas,
e tu és Kate Moss nesta calçada.
Passo o olho desde o teu pé à cabeça, discretamente,
apreciando cada curva e contra curva
que a tua silhueta não esconde.
Suscita até 2 ou 3 ideias desenvergonhadas na minha mente,
não vou mentir.
Mas também estou de ócluos de sol, e sou humano.
Por isso posso.
Toda linda e nem sabes.
Se calhar passámos ao lado de um romance selvagem,
nestes segundos que te atravessaste à minha frente.
Quem sabe…
Mas não me importa.
São danos colaterais de tempos mortos.
É suposto ser assim mesmo.
O momento é todo teu.
E quando já esgotei os rodeios,
quando só há o eu e o agora,
escavo mais fundo ao virar-me outra vez para dentro.
Exploro as minhas felicidades e os meus transtornos.
Vejo quem fui, quem sou, e quem serei.
Onde é que posso melhorar ?
Quem é que eu quero ser ?
Quem é que eu devo ser ?
Pontos de situação da vida.
Penso na sorte que tenho,
por este segundo estar a passar por mim.
Devo aproveitá-lo pelos que nunca nasceram, que nem o provaram,
e por todos aqueles que de tempo,
já não têm mais.
Que sorte tenho eu,
de sentir este ar a encher-me os pulmões,
cada vez que respiro.
Que sorte foi esta vida vir ter comigo,
pois se não tivesse vindo,
quem sabe onde é que esta alma estaria perdida.
Que sorte é poder ter este momento,
em que reflito na sorte que tenho,
de poder estar a ter este momento.
Que sorte é viver,
entre as luas e os sóis da vida.
Que sorte é poder caminhar esta jornada, de risos e choros,
com amigos que vão ficando por perto.
Que sorte é ter uma família que nos atura,
e poder criar uma nossa um dia.
Poder provar comida deliciosa, que há por todo lado.
Ouvir uma boa música, daquelas que nos fazem algo ao corpo, que
seria crime tentar explicar por palavras.
Perdermo-nos nas incríveis histórias de cinema e literatura que
outros nos deixaram.
Poder abraçar, e sentir o bater do coração de outro humano.
Poder beijar na boca e mandar boas fodas,
entre pingas de suor e orgasmos tão explosivos,
que metem Hiroshima e Nagasaki em 1945,
a parecer uma festa de infantário.
Poder chorar desalmadamente por alguém querido a nós que partiu.
Gritar numa discussão.
Sentir o pelo macio de um animal.
Comer um gelado da Olá no verão, ou uma sopinha da avó no inverno.
Beber copos com a malta e dançar mal debaixo de luzes neon,
ao som de música comercial na discoteca. Estalar pão acabado de fazer.
Que sorte podermos sentir o medo de ser apanhados,
quando fazemos merda.
Cheirar relva acabada de cortar.
Poder apanhar carreirinhas no mar.
Levar socos na cara, e dá-los de volta.
Saltar um batimento cardíaco quando uma peça de loiça se parte.
Poder andar rápido, ou alto, ou ambos,
no que quer que seja, e sentir a adrenalina a correr nas veias.
Poder festejar a vitória do nosso clube.
Deitar na cama tenra, a seguir a um dia preenchido.
Poder apagar as velas de mais um bolo de anos.
Seja prazer ou dor,
se o sentimos, é porque estamos vivos.
E essa é a maior regalia de todas.
Fazer parte do tempo em si.
Esta vida é um privilégio,
mesmo com todos os seus tiros à queima roupa.
Se calhar também sempre a levei fácil,
em comparação a outros.
Não me posso queixar.
Mas todos vamos sofrendo, seja por esta ou aquela.
Não deixamos de ser uns sortudos.
Caos é o que faz a história interessante.
Desafio-vos a todos dizerem-me um bom filme em que nada correu mal.
Por isso há que apreciar cada momento,
por mais clichê que isto seja,
e por mais insignificante que ele pareça,
porque não é.
Até os tempos mortos.
Dêem-lhes uma chance de viver.
Por isso Tempo,
bem podes vir tentar dar-me secas com esses teus derivados
defuntos.
Mas aviso-te já que vais sair desiludido.
Quanto mais peso me metes em cima,
mais liberto eu estou.
Mais aprendo.
Esta vida que me dê mais tempos mortos como este,
que eu ressuscito-os a todos.
